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O dia-a-dia em pequenas histórias

Diário de bordo

A Trilha Sulamericana


Tuesday, November 24, 2009


Eu pensei muito... e cheguei a conclusão que está na hora de terminar a viagem aqui em Belem do Pará.

Belem sempre foi o ponto final da viagem. Durante a viagem eu mudei de ideia e pensei em voltar pedalando até minha casa, mas não encontrei a motivação necessaria para isso. Sinto que ja encontrei tudo o que eu procurava quando comecei.


Eu lembro que na noite antes de sair de casa eu comecei a sentir como era grande o que eu estava me propondo a fazer. Depois, no segundo dia, veio a fratura e a ducha de agua fria na minha cabeça. Fui motivo de piada e eu mesmo cheguei a duvidar da minha capacidade.

Depois que reiniciei a viagem eu ainda tinha todas as duvidas na minha cabeça. A primeira semana foi dura. Chuva, frio e uma tedinite horrivel no meu joelho.

Quando eu olhava a estrada toda a America do Sul caía sobre as minhas costas. Eu mesmo nao consegui acreditar que teria forças para cruzar rodo um continente.

Conforme fui me afastando eu percebi que o segredo era esquecer que eu tinha 15000km pra cruzar e eu tinha que viver dia após dia, ou melhor, eu tinha que cruzar cada quilometro, cada curva... Subir cada ladeira e só me preocupar com a proxima quando surgisse.


Alí termina o Brasil. O ponto mais ao Sul.

Me lembro de um dia no Sul do Uruguai. O calor estava fortissimo. Eu estava a 140km de Colonia del Sacramento e nao tinha mais pesos Uruguaios no bolso. Eu tinha que chegar. E Cheguei. Cruzei os 140km debaixo de um Sol de 40 graus. Cada vez que eu vencia um desafio, sentia mais força para o proximo. Tudo ficava mais facil.

Quando cheguei em Buenos Aires, ainda sem falar espanhol, eu estava no meio de uma cidade enorme, longe de casa. Nao tinha endereços e telefones de ninguem. O calor do verão que começava e o transito daquela cidade quase me enlouqueceu. Enfrentei a cidade. Ninguem ia fazer pra mim. E foi justo em Buenos Aires que eu conheceria o frances Vincent, que ficaria 45 dias na estrada comigo.


Buenos Aires

Começamos a cruzar a Argentina. Eu nao pensava e nao queria pensar na distancia que eu teria pela frente. Simplesmente seguia.


Eu e Vincent em Mar del Plata, Argentina

Durante alguns dias no sul da provincia de Buenos Aires, passamos pelos dias mais quentes da viagem. A foto que segue é o dia que eu tive meus limites fisicos testados ao extremo. Eu simplesmente nao estava suportando mais o calor. Estava totalmente desgastado. Mas conseguimos. Mais alguns dias depois e estavamos entrando na Patagonia Argentina!




Eu e Vincent no Jornal Argentino


Ruta 3, Argentina

Vivemos algumas situações inusitadas, como o piquete perto da cidade de Las Grutas, Argentina. Ninguem passava, mas nós passamos. Com nossa conversa e nossas bicicletas rsrsrs... Foi demais.


Piquete em Las Grutas, Argentina

A Patagonia nos recebeu como ... a Patagonia deve receber quem a quer cruzar, com uma bela chuva de granizo na cabeça. Estavamos apavorados e riamos ao mesmo tempo. No fim do dia acampamos no escuro, na lama e debaixo de chuva. A aventura extrema no Sul das Americas estava começando de fato!

Tivemos que fazer um "desvio" de 400 km para o interior da Argentina, pois os ventos que vinham do oceano nao permitiam que seguissemos.

Logo eu chegaria ao lugar mais isolado e selvagem de toda a viagem: A Peninsula Valdes.

Neste lugar eu vi praias cheias de animais, como focas e leoes marinhos. Estavamos isolados, numa area 3 vezes maior que a ilha de Santa Catarina e sem fontes de agua naturais. Tivemos que racionar agua.







Depois, ja com a companhia do frances max tambem, seguimos até Punta Tombo, uma colonia com mais de 1 milhão de pinguins. Caminho durissimo. Muitos furos no pneu. Tive que ter muita paciencia.


Punta Tombo, Argentina

Agora, Max, Vincent e eu teriamos o proximo desafio: Cruzar uma area enorme da Argentina, onde nao encontrariamos quase nada.
Os ventos nos castigavam todos os dias. Tinhamos que revesar e ficar em fila para minimizar os efeitos dos ventos.
Me lembro que um dia em que fiquei para tras dos dois. Eu ja estava totalmente desgastado, fisica e mentalmente. Depois de 4 dias cruzando a pampa Argentina com vento contra eu nao aguentava mais. Fiquei pra tras e sem comida. A comida estava com Max a Vincent.
Enquanto eu lutava pra conseguir forças e lutava contra o vento, mil coisas passavam pela minha cabeça. Me lembro que no fim da tarde eu cheguei ao meu limite. Gritei, no meio daquele vento fortissimo. Gritei alto, mas ninguem podia me ouvir. Estava com raiva de estar daquele jeito... Não via luz nehuma no fim do tunel rsrs... E então depois de uma subida, ja empurrando a bike, pude ver 1km a minha frente, Max e Vincent. Tinham acabado de encontrar abrigo. Um posto de gasolina abandonado. Passamos a noite nos sacos de dormir protegidos do vento pelas paredes velhas e sujas. De manha dividimos a ultima comida que tinhamos: um pouco de lentilhas. Logo depois cruzamos os ultimos quilometros até Comodoro Rivadavia.





Meu proximo desafio seria seguir sozinho até o fim do mundo! Pedalei dias pela pampa patagonica argentina. Os ventos mudaram e ficaram a favor... Acampando em fazendas e a beira da rodovia, eu consegui chegar a Rio gallegos, aos pés da Terra do Fogo.




Ventos de mais de 100km/h

No caminho a Terra do Fogo e depois já na ilha, eu iria descobrir que aqueles ventos que eu tinha pego antes eram brincadeira. Tive que acampar pelo caminho e em alguns dias tive que conviver com ventos de mais de 120km/h... Me lembro de um dia em que tive que empurrar a bike por 15km. O vento me empurrava com bicicleta e tudo para fora da rodovia de terra. Me lembro que o vento arrancou o paralama dianteiro da bike e apenas pude ver ele voando para longe.

Lutei e nao desisti. Mesmo a pé eu iria chegar a Ushuaia, se fosse necessario. Cheguei a um acampamento de trabalhadores da rodovia e na hora me ofereceram comida... e que comida!!! Acho que viram a situação que eu estava passando na quele momento e viram que eu estava precisando mesmo. Fiquei ali, protegido até o vento diminuir um pouco.

Logo eu estaria a caminho de Ushuaia e veria pela primeira vez montanhas com neve.


Lago Fagnano, Terra do Fogo, Argentina. A primeira vez que vi neve numa montanha


O fim do Mundo!


Eu e o Argentino Matias no parque nacional de Tierra del Fuego, Argentina


Laguna Esmeralda

Depois de Ushuaia eu ainda buscava motivação para seguir. A gloria de chegar ao fim do mundo numa bicicleta foi demais pra mim. Sentia uma força de realização sem precedentes. Mas eu tinha que continuar


Quando saí de Punta Arenas, no extremo Sul do Chile, estava chovendo. Eu estava um pouco desmotivado. Tinha passado a ultima noite numa casa de madeira abandonada a beira da rodovia. Sozinho.
Me lembro que um dia um vento frio fortissimo começou a soprar. Pude ver uma tempestade de neve no horizonte e parecia estar vindo na minha direção. Busquei abrigo numa parada de onibus de madeira. Fiquei ali umas 2 horas. O tempo estava horrivel. E foi então que vi um ciclista se aproximando. Eu acabava de conhecer o alemão Ralph, que ficaria 53 dias na estrada comigo.


Ralph

Cruzar o Sul do Chile e parte da Argentina com o Ralph foi muito bom. Do lado argentino, visitamos o Glaciar Perito Moreno. Neste dia o meu queixo caiu de verdade. Imaginem 240km quadrados de gelo, com 60 metros de altura! Um lugar magico realmente.


Ruta 40, sul da Argentina







Cruzar a Carretera Austral, no sul do Chile, foi um grande desafio. fazer mais de 50km por dia é quase impossivel. O relevo e as costelas de vaca na estrada são muito duros. O Sul do Chile é lindo, selvagem e desafiador.


Carretera Austral, sul do Chile

Logo teriamos a companhia de dois norte americamos. Tomas e Zach foram nossa companhia por 2 semanas.

Cruzamos a ilha de Chiloe juntos e seguimos a Chaiten em barco. Ver uma cidade completamente destruida por um vulcao foi uma coisa muito forte. A imagem do vulcao ativo no horizonte era incrivel. E tambem experimentei tremores de terra, coisa que tambem foi novidade pra mim.


Chaiten, Chile


Vulcao Chaiten


A despedida dos meus amigos em Puerto Montt, Chile

Depois eu ja estava sozinho de novo e resolvi cruzar a cordilheira até o lado argentino para visitar Bariloche.


Lago de todos los Santos e vulcao Osorno, Chile


Eu e o argentino Mariano em San Martin de los Andes


Vulcão Villarica, Pucon, Chile

Meu proximo desafio seria cruzar pedalando o Chile central. A parte mais desenvolvida do pais e cheia de cidades. Pisaria pela primeira vez na lendaria rodovia panamericana!


Saltos de Laja, Chile Central


"La Moneda" - El Palacio del Gobierno - Santiago de Chile

Chegar a Santiago foi uma loucura. Talvez mais arriscado que estar sozinho na patagonia. As autopistas nao sao feitas para bicicletas e tive que ignorar algumas placas que diziam que era proibido.

Em Santiago eu conheci o frances Olivier, que em mais 10 dias, cruzaria mais de 500km pelo Chile junto comigo.


Plaza de Armas, Santiago de Chile

Valparaiso, No Litoral do Chile, foi um lugar que me recebeu muito bem. La eu conheci a colombiana Laura Patricia Pardo rsrs... Acho que nao preciso entrar em detalhes, mas ela foi o motivo da minha permanencia de 10 dias em Valpo. Recorde absoluto na viagem.




Laura e eu em Vina del Mar, Chile


Laura e eu em Valpo

(É complicado escrever aqui tudo que vivi... Estou deixando de escrever MILHARES de acontecimentos, porque ficaria impossivel por tudo num site. Esta tudo aqui na minha cabeça...)

Eu ainda tinha metade do Chile pela frente, mas fiz uma pausa na viagem. Uma pausa de 20 dias para ser padrinho do casamento de 2 amigos muito especiais.
Enquanto deixava minha bike no Chile e seguia ao Brasil eu só pensava no que teria ainda pela frente. O Deserto de Atacama, O altiplano boliviano, Salar de Uyuni, Lago Titicaca, Machu-Picchu e a selva Amazonica... Uau!!

Quando voltei tinha mais vontade e o desafio agora seria o deserto mais seco do mundo.


Bahia Inglesa, Atacama, Chile











Cruzei o deserto sem conhecer muita coisa. Segui de peito aberto. Sem medo do desconhecido.
Em alguns momento eu fiquei 7 dias na estrada. Acampando no meio do nada!
Quando minha agua acabava, algum caminhoneiro me dava mais. Esta experiencia foi, talvez, a mais forte da viagem. Era eu e somente eu... alí, naquela imensidão seca!!! Não da pra descrever de verdade!


La Portada, Norte de Antofagasta, Chile

A Bola da vez seria subir. Subir, subir e subir até o topo dos Andes. Dor da cabeça no primeiro dia. Ventos frios e mudança climatica rapida... Tudo novidade.

Meu caminho até a Bolivia foi um dos mais duros. A 4000m eu passei a noite mais fria na barraca. Dez graus negativos. Pela manha eu nao tinha agua para o café, pois estava completamente congelada.


Agora eu teria que me acostumar com as duras estradas bolivianas, com o frio congelante das noites no altiplano e com a pobreza critica dos pequenos povoados.

Pedalar no Salar de Uyuni foi inacreditavel. Uma imensidao de Sal que vai até o horizonte mais distante... Realmente um dos lugares mais extraordinarios da America do Sul.


Valle de la Luna, Chile


Igrejinha de San Pedro de Atacama, Chile


A 4000 metros de altitude, Atacama, Chile


Salar de Uyuni, Bolivia

Quando cheguei a ilha do Sol, no lago Titicaca boliviano, eu ia apenas visitar e tirar umas fotos mas acabei ficando 7 dias lá..
Com uma paisagem alucinante e um ambiante "zen" cheio de amigos... eu nao podia sair de la.


Ilha do Sol, Titicaca, Bolivia


Lago Titicaca e o Monte Llampu

Minha proxima meta e talvez a mais importante desde Ushuaia seria Machu-Picchu. Pedalei como um louco pelo Peru até Cuzco. Entao segui até Machu-Picchu. A chilena Marcela me acompanhou. Caminhamos um total de 5 horas, sendo duas subindo escadas.
A primeira olhada em Machu-Picchu é impressionante. Ninguem pode imaginar que haja uma coisa assim no alto de uma montanha antes de ver com seus proprios olhos.


Cuzco, Peru


machu-picchu


Machu-picchu

Agora eu tinha de cruzar a cordilheira e descer até a Amazonia... Este capitulo foi um dos mais alucinentes de toda a viagem. Sair de 4725 metros de altitude com quase zero grau e apenas 3 horas depois estar a menos de 1000m no meio de uma chuva tropical, no meio da selva Amazonica Peruana com 35 graus.... foi inacreditavel.


Seguindo a Amazonia peruana


4725 metros de altitude


Amazonia Peruana

Ainda tive que pedalar mais de 1500km pela selva até Porto Velho, em Rondonia para tomar o barco a Manaus e depois até aqui em Belem.


Selva Amazonica, Rondonia, Brasil


Rio Amazonas, Pará

Tentei contar aqui um pouquinho da minha viagem. É quase um esforço em vão, tentar condensar 365 dias de viagem num punhado de palavras. Chega até a ser estupido... Realmente eu preciso escrever isso detalhadamente e por tudo no papel.

Aqui em Belem termina a Trilha Sulamericana. Tudo que eu busquei, eu encontrei. Encontrei até o que eu nao procurava.
Hoje eu me sinto mais forte e preparado para outros desafios. Essa experiencia intensa foi absolutamente incrivel. Vivi intensamente cada dia. Cada dia foi uma surpresa em que eu nao fazia ideia como terminaria.

Tenho uma lista enorme com nomes das pessoas que me ajudaram. Gente que conheci e que de alguma forma contribuiu com meu sucesso.
Realmente os sonhos podem ser realizados. Por mais que demore e que pareça uma ideia absurda, os sonhos podem ser realizados. Se voce poe a meta na cabeça e segue sem olhar pra tras.... da certo.

Se eu não tivesse sido um pouco inconsequente, jamais teria conseguido. As vezes, simplesmente seguir e nao questionar é o melhor caminho. Não sente medo quem não sabe dos riscos!

Subir uma montanha, com vento frio na cara, empurrando a bicicleta... devagarinho, um passo de cada vez.
Aprendi a ser humilde. Não to falando de fazer carinha de coitado e falar baixinho... to falando de ser humilde em relação aos desafios. Respeita-los, saber que não será facil, mas mesmo assim tentar.


Obrigado a Todos... Ainda vou postar mais algumas coisas aqui no site nos proximos dias.

Na quarta-feira vou voar daqui de Belem até o Rio de Janeiro e depois de alguns dias sigo de onibus até Ourinhos. Quero rever os amigos, passar o fim de ano com a familia. Quero acordar de manha e saber como será o meu dia. Acho que quero um pouco de rotina!!! rsrrs...


Trilha Sulamericana

15378 km em bicicleta
3853 km em barcos
665km em onibus

Total viajado: 19896 km em 365 dias



Meu aniversario, há 3 dias, com meus novos amigos paraenses...




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